Peter Burke explica o papel dos bibliotecários e das bibliotecas na história do conhecimento
Com uma produção científica marcada pela interdisciplinaridade, o professor Peter Burke, da Universidade de Cambridge, já escreveu mais de 20 obras. Dois dos livros por ele escritos retratam a história do conhecimento. O primeiro volume aborda o período de Gutenberg a Diderot e o segundo, da Enciclopédia à Wikipédia.
Em entrevista, Peter Burke disse que escreverá mais sobre essa temática e falou sobre “O papel dos bibliotecários na história do conhecimento”, assunto abordado na conferência de abertura do Seminário Nacional de Bibliotecas Universitárias (SNBU 2014), organizado pelo Sistema de Bibliotecas da UFMG. O pesquisador enfatizou a importância desses profissionais e das bibliotecas no atual contexto de informação fragmentada e crescente inovação tecnológica.
Assessoria de Comunicação do SNBU (ACS) – Falando sobre o tema da sua conferência no SNBU 2014, qual é o papel dos bibliotecários na história do conhecimento?
Peter Burke (PB) – As bibliotecas e os bibliotecários têm tido muitos papéis na história do conhecimento e, é claro, especialmente o papel prático. Uma importante função intelectual desses profissionais atualmente, e talvez a mais necessária, é a classificação dos livros. Estamos vivendo na era do que eu chamo a explosão do conhecimento. Explosão no sentido de expansão; o que é bom porque nós conhecemos mais coletivamente do que antes, mas também explosão significa fragmentação. Então, nesse contexto, nós precisamos de profissionais da informação que reordenem o “todo” e relacionem um tipo de conhecimento aos outros, classificando-os. E bibliotecários, não sozinhos, mas com outros acadêmicos, têm um papel importante nesse aspecto.
ACS – Qual é o futuro das bibliotecas e dos livros impressos nesse contexto de fragmentação do conhecimento e crescente inovação tecnológica?
PB – É sempre difícil prever o futuro. Sou um otimista diferenciado. Eu amo ler livros em papel. Aliás, eu cresci em uma livraria. Lamentaria muito se todos eles desaparecessem. Digo que sou um otimista diferenciado porque acredito na coexistência do livro impresso, até mesmo as revistas e jornais impressos que estão mais ameaçados, com os arquivos digitais. Como um historiador, gosto de fazer comparações e a situação hoje faz lembrar-me do século XV, quando a impressão foi inventada. Os copistas acreditavam que os livros impressos eliminariam os manuscritos e que eles perderiam seu sustento. Isso não aconteceu. Houve uma coexistência entre impresso e manuscrito, que passou a ser utilizado com o propósito da elite de manter determinados conhecimentos restritos, não permitindo que chegassem ao grande público. Então eu acredito que haverá essa coexistência entre o livro impresso, que será melhor para alguns propósitos, e os livros digitais, para outras finalidades. Portanto, o livro ainda não está morto, eu espero…
ACS – Como as bibliotecas e os bibliotecários podem se beneficiar dos exemplos da história do conhecimento?
PB – Acredito que alguns poucos bibliotecários têm sido, de fato, criativos, e seria interessante que suas ações fossem copiadas em todo o mundo. Minha biblioteca favorita é a do Warburg Institute, em Londres, cujo primeiro bibliotecário, o austríaco Fritz Saxl, era especialista em História da Arte. Ele acreditava que a biblioteca deveria ser organizada de acordo com a lei da boa vizinhança, ou seja, os livros vizinhos deveriam tratar exatamente o mesmo assunto, instigando os leitores a, além de levar o livro que estavam procurando, pesquisar também nos outros livros “vizinhos” disponíveis na estante. Esse tipo de biblioteca (que favorece a lei da boa vizinhança) deve ser organizada por tópico e não por grandes categorias como “História” ou “Geografia”. Existem tópicos incríveis no mundo das bibliotecas. Eu me lembro de uma que dizia “O retorno do último imperador do mundo”. Há apenas 5 ou 6 estudos sobre isso e estão todos juntos e, dessa forma, o sistema de vizinhança funciona muito bem. Para fazer a classificação das obras nesse sistema, é necessário ter bibliotecários acadêmicos, pois não se pode classificar o livro apenas pelo título, mas pela obra inteira. É fundamental lê-la por inteiro. Somente assim sabe-se exatamente onde colocá-lo na estante. O Warburg Institute teve uma seqüência de bibliotecários acadêmicos – metade do tempo bibliotecário e a outra metade professores nas universidades. Pelo que eu saiba, esse sistema ainda não foi imitado, mas seria maravilhoso se fosse.
ACS – Professor, seus livros e pesquisas são marcados pela interdisciplinaridade. Qual é a importância de manter esse diálogo entre diferentes áreas do saber?
PB – É muito importante porque, pessoas trabalhando em diferentes assuntos, às vezes estudam questões similares, mas não conhecem as pesquisas uns dos outros e estudam essas questões, algumas vezes, de perspectivas diferentes, por utilizarem disciplinas com diferentes tradições. Isso nos leva de volta para o Warburg Institute, originalmente a biblioteca privada do acadêmico Aby Warburg. Ele não precisava trabalhar porque era filho de um banqueiro. Por isso, podia explorar livremente várias áreas do conhecimento. Aby transgredia sempre as fronteiras das disciplinas e alternava entre as artes, história, antropologia e outras áreas. Isso é algo muito importante na inovação e descoberta de conhecimentos. Essa interdisciplinaridade pode acontecer de duas diferentes maneiras. Pode ser a união de pessoas que especializaram em diferentes disciplinas em uma pequena Conferência, digamos, trocando idéias. É um bom começo, mas não é o suficiente. Acredito também ser importante mantermos viva uma rara espécie intelectual, que agora definitivamente é uma espécie ameaçada: o sábio; aquele que sabe muito sobre várias disciplinas e estuda a fundo história, antropologia, sociologia, matemática, geografia etc. Esse tipo de pessoa é capaz de conectar os diferentes assuntos de uma maneira melhor do que um grupo de 10 ou 15 acadêmicos trocando idéias ao redor de uma mesa. Restam pouquíssimos indivíduos assim. É muito importante manter um ambiente em que essas espécies intelectuais possam florescer. Darei um exemplo: o pesquisador Jared Diamond. Ele começou a vida intelectual como fisiologista. Então se tornou interessado em ornitologia e, como resultado, foi estudar alguns pássaros na Nova Guiné. Lá, ficou interessado em lingüística por estar em um país com centenas de línguas e também se interessou por antropologia, porque estava vivendo em uma sociedade muito diferente dos EUA, onde ele cresceu. Então aprendeu todas essas disciplinas e decidiu também estudar história. Foi quando escreveu 3 livros famosos nos quais mesclou o conhecimento científico ao histórico e produziu interessantes teorias. Então Jared Diamond é um exemplo vivo da interdisciplinaridade que, eu espero, não desaparecerá nas próximas gerações.
ACS – Falando sobre a internet e Wikipédia, como você avalia o fácil acesso à informação no processo de construção e validação do conhecimento?
PB – Primeiro, é importante fazer uma distinção entre “buscar” e “pesquisar” uma informação. “Buscar” significa procurar por uma informação rapidamente em lugares que nos permitem essa agilidade. Nesse aspecto a internet é maravilhosa e a Wikipédia tem seu espaço. “Pesquisar”, por sua vez, significa voltar aos recursos originais. Talvez, em algum momento no futuro, seja possível, ao ler um artigo na internet, por meio de cliques, ser levado de uma fonte à outra, de um dado ao outro. Atualmente, o melhor se pode fazer é colocar uma nota de rodapé na Wikipédia com a referência de um determinado livro, o que já é o início. Eu gosto da Wikipédia em muitos aspectos, por várias razões diferentes. A primeira é o fato de possibilitar uma experiência democrática e escrita colaborativa, aberta a todos. Em segundo lugar, gosto do que eu chamo de “advertências para a saúde intelectual”, porque os conteúdos trazem mensagens do tipo: “esse artigo pode ser melhorado” ou “esse artigo não possui fontes suficientes” e convida os leitores a aperfeiçoá-los. Nas enciclopédias impressas isso não era possível. Além disso, elas eram atualizadas a cada 10 anos, já a enciclopédia on-line é atualizada diariamente. Por fim, há também a vantagem que você pode expandir a enciclopédia virtual, o que nas impressas causaria aumento dos custos com a produção. Nas enciclopédias, quando era acrescentada uma informação, tiravam aquelas ultrapassadas. Seria interessante estudar o que foi mantido nessas enciclopédias, ao longo dos anos, porque isso mostra como sucessivas gerações têm diferentes avaliações da importância de determinados tipos de conhecimento. Na Wikipédia, pelo menos a princípio, você pode manter tudo, porque está na “nuvem”, onde parece haver muito espaço. Para buscar informações, ela é maravilhosa e, às vezes, podemos utilizar a Wikipédia até mesmo para pesquisar. No entanto, na maioria das vezes, para tal finalidade, ainda utilizamos livros impressos e preservamos, até mesmo, os manuscritos, em milhares de arquivos ao redor do mundo.
ACS – Você já escreveu vários livros sobre a história do conhecimento. Atualmente, você planeja escrever algum livro?
PB – Confesso que fiquei viciado na história do conhecimento e escrevi livros gerais sobre esse assunto, creio que posso focar em um tópico específico. Estou interessado no papel dos exilados, refugiados e expatriados na história do conhecimento, porque normalmente eles têm a experiência de lidar com dois sistemas de conhecimento diferentes, mesmo que tenham sido desloca dos apenas dentro da Europa. Pense, por exemplo, nos estudiosos judeus, que tiveram que deixar a Alemanha em 1933, ou a Áustria em 1938. Muitos deles foram para outros países europeus, como a Inglaterra, e muitos foram para os Estados Unidos. Nesses lugares encontraram diferentes culturas de conhecimento. Um fato interessante é que o Inglês, sobretudo na década de 30, tinha certa aversão à teoria, devido à tradição inglesa do empirismo. Os estudiosos alemães, por sua vez, vieram de uma tradição onde a teoria era muito valorizada. Dessa forma, em um primeiro momento, houve muitos mal-entendidos, mas graças à interação entre esses estudiosos, é perceptível certa hibridização do conhecimento. Definitivamente, alguns dos estudiosos ingleses jovens desenvolveram interesse pela teoria e vice-versa. Esse é um exemplo do importante impacto dos exilados, refugiados e repatriados no sistema de conhecimento do país no qual passam a morar e, alguns deles, têm uma experiência duplicada. Essa situação de ser deslocado de pátria pode não ser muito confortável, mas pode levar a novos insights e é isso que eu quero pesquisar no meu novo livro.