Raphael Cavalcante é bibliotecário da Câmara dos Deputados, atuante em várias frentes, como na coordenação do Comitê Gestor do Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça, um dos idealizadores da Liga dos Bibliotecários Bolivarianos e, acima de tudo um ser humano muito coerente e preocupado com o bem estar social. Em tempos de instabilidade política sabemos que isso tem sido deixado um pouco de lado.
1. Por que Biblioteconomia?
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer ao Portal do Bibliotecário pelo convite, ao Filipe pela generosidade. Estou realmente lisonjeado. Sobre a Biblioteconomia, o meu ingresso no curso se deu de forma bastante prosaica. Do alto dos meus 16 anos, no último ano do Ensino Médio, em 2002, percebi que precisaria de pouquíssimos pontos para ser aprovado no curso pelo Programa de Avaliação Seriada. Como não sonhava com algum curso em especial, a Biblioteconomia me pareceu atrativa o suficiente pelo objeto de trabalho que naquela época eu supunha ser exclusivamente o livro. Sempre fui um leitor voraz e me agradou a ideia de trabalhar com livros e, claro, a possibilidade de passar em algum concurso público no futuro, seguindo dica de uma professora.
2. Qual é a sua opinião sobre o futuro da nossa profissão?
Acho que a Biblioteconomia, para continuar existindo, deverá ser muito mais focada em pessoas do que em técnicas. Somos até hoje escravos de processos que julgamos importantíssimos, subjugando muitas vezes os anseios dos usuários. Como o brasileiro é amante de tudo que vem do exterior, basta ler qualquer texto sobre a reinvenção das bibliotecas públicas europeias, palcos de aulas de gastronomia e empréstimo de bicicletas. O futuro vai por aí.
3. Qual foi o seu maior desafio no trabalho?
Eu diria que o meu maior desafio no trabalho se confunde com o meu desafio do exercício da profissão. Descobrir o que é ser bibliotecário para mim e como devo atuar. Eu diria que ao problematizar isto, hoje sou muito mais satisfeito com a profissão, porque é como se eu tivesse descoberto a minha identidade profissional. Mas, pensando bem, talvez o meu maior desafio seja compartilhar com os colegas o papel social da Biblioteconomia e de que como nosso exercício profissional pode caminhar em direção a este ideal. Embora seja uma tarefa hercúlea, é gratificante quando se logra um êxito ainda que pequeno.
4. Conte-nos um pouco sobre as atividades que você desempenha na Biblioteca da Câmara dos Deputados?
Na Biblioteca da Câmara dos Deputados, eu trabalho na Seção de Disseminação da Informação, é um setor em constante efervescência, pois vai desde o DSI tradicional até ações de marketing externo e interno, passando pela coordenação das nossas contas nas redes sociais. Não sou talhado a rotinas muito arraigadas, por isso gosto da minha função. Organizar exposições, pensar nas postagens do Facebook, nas próximas ações de marketing da Biblioteca exige muita disposição e resiliência. Às vezes acertamos, mas também erramos. Gosto deste desafio. Ainda na Câmara, também trabalho como vice-coordenador do Comitê Gestor do Programa Pró-Equidade de Gênero e Raça, seguindo uma política da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) e da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). É uma das grandes paixões da minha vida profissional trabalhar com temas que dizem respeito a grupos segregados. Posso dizer que a minha visão de mundo se ampliou de forma que jamais imaginei. Quando possível, tento aliar as minhas atuações na Câmara. Dentro em breve, apresentaremos alguns desses projetos em conjunto.
5. Você é um dos idealizadores da Liga dos Bibliotecários Bolivarianos, qual é a sua visão sobre o atual momento político que estamos vivendo?
Eu diria que a polarização tão alardeada pela mídia é um novo nome para a velha luta de classes que sempre existiu no Brasil, mas que era embotada pelo verniz da nossa suposta cordialidade, inclusive sociologicamente construída como problematiza o estudioso Jessé Souza, atual Presidente do IPEA. A partir do momento em que surgem políticas públicas mínimas para a inclusão dos menos favorecidos, rendendo já alguns frutos, parte da elite se insurge numa cruzada contra a corrupção. Ora, como é que você sonega impostos, não declara a conta do dentista, e luta contra a corrupção? Não estou aqui defendendo o Governo, que, como sabemos, deixou de lado inúmeras reformas sociais necessárias. Mas também não sou míope a ponto de não enxergar que houve mobilidade social no Brasil de forma inédita. Ah, também não “apóio a corrupção” ou recebo qualquer auxílio governamental, antes que venham com desonestidade intelectual. Penso que as pessoas deveriam ir às ruas, devidamente paramentadas de verde e amarelo (mas não com aquelas camisas da CBF, por favor), para lutar pela continuidade e melhoria dessas políticas de inclusão, já que ainda há muito a ser feito e estamos muito longe de qualquer ideal de justiça social.
6. Você sempre trabalhou dentro da biblioteca? Se não, onde mais? Como foi a experiência?
O meu primeiro emprego na Administração Pública se deu no GDF. Eu tinha acabado de completar 20 anos, ainda na graduação, quando fui chamado. No GDF, trabalhei na Escola de Governo, lidando na organização de cursos voltados para o GDF. Aprendi bastante e contei com a compreensão de todos os colegas em relação às minhas dificuldades de iniciante. Lá fiquei por quase 4 anos, quando fui trabalhar na Anatel, já como bibliotecário.
7. Qual foi o último livro técnico que você leu? Sugira uma leitura técnica.
O último livro da nossa área que li foi “A conturbada história da bibliotecas”, de Matthew Battles. Apesar de não ser exatamente um livro profundo, apresenta uma interessante história das Bibliotecas que foram extintas ao longo da história, vítimas de saques e da ira de imperadores. No entanto, o que eu gostaria de recomendar não é um livro técnico, mas o último livro de Jessé Souza, “A tolice da inteligência brasileira”, na qual o autor se dedica à desconstrução de alguns mitos sociológicos e econômicos que nos perseguem até hoje. Foi a minha melhor leitura em meses.
8. Qual livro você está lendo agora? Sugira uma leitura para lazer.
No momento, comecei a ler “A garota dinamarquesa”, o livro que expirou o filme homônimo, ainda não assistido. Como lazer, quero indicar “Mulheres Perfeitas”, do Ira Levin, mesmo autor de “O bebê de Rosemary”. O livro já foi adaptado duas vezes para o cinema, sendo a última vez em 2005, tendo Nicole Kidman como protagonista, o resultado foi catastrófico. No entanto, o livro vale a pena. É uma bela alegoria de humor negro sobre a emancipação feminina na década de 70.
9. Quem é seu mentor na Biblioteconomia, por que?
Wander Filho Pavão, bibliotecário escolar do DF, que tive a honra de conhecer ainda na graduação. Foi com ele que aprendi a enxergar a Biblioteconomia a partir do ponto de vista do seu papel social. Mesmo na Câmara, eu estava consumido por uma visão muito restrita da área, me encaminhando para algum Doutorado que certamente não satisfaria. Em diálogos com Wander, percebi o quanto o potencial bibliotecário era maior do que eu imaginava e o quanto poderíamos começar a fazer a diferença na sociedade. Foi aí que surgiu a ideia para a Liga de Bibliotecários Bolivarianos, que hoje estamos transformando no coletivo Liga Bibliotecária. Também quero destacar uma pessoa que é minha alma gêmea na profissão: Marília Augusta de Freitas.
10. Mande um recado para todos os bibliotecários do Brasil.
Pessoal, pensemos nas técnicas, mas não sejamos escravos dela. Enxerguemos nos usuários a nossa raison d’etre e neles foquemos os nossos esforços. Temos um potencial enorme nas nossas mãos que sequer nos damos conta. Vamos nos aliar a outros profissionais que têm muito a contribuir com a nossa profissão, vamos lutar por condições dignas de emprego junto aos órgãos de classe e pela proliferação de mais e mais bibliotecas neste nosso país continental. Unamos esforços.