Não deixem de ler essa entrevista inspiradora da bibliotecária pernambucana Gilvanedja Mendes! Nessa conversa ela nos mostra a importância do papel social que os bibliotecários possuem e conta sua própria experiência neste contexto. Convida os bibliotecários a se engajarem na briga por condições melhores de trabalho e reconhecimento profissional.
1. Por que Biblioteconomia?
Primeiramente, agradeço ao Portal do Bibliotecário, através de Filipe Soares, pelo convite. Essa iniciativa é muito importante para divulgarmos ainda mais nossa profissão e compartilharmos nossas experiências.
A Biblioteconomia foi a melhor escolha que fiz, em meados de 2005, quando ainda cursava o 3º ano do Ensino Médio. Eu sempre gostei de ler, de estar em bibliotecas, sentia necessidade de conhecer um pouco acerca de uma série de assuntos. Na época, na escola que estudava, havia o serviço de orientação profissional oferecido pela coordenação pedagógica e foi através desse apoio que comecei a buscar informações sobre as possibilidades que eu poderia escolher para minha vida profissional. Consultei uma série de materiais oferecidos em sites, bancas de revistas e cada vez mais percebia que o universo de possibilidades que a Biblioteconomia me oferecia era imenso; sentia que era o que eu queria para minha vida. Contudo, certa vez, em sala de aula, ao comentar sobre essa minha escolha com uma professora, tomei um “banho de água fria”. A professora começou a me listar uma série de informações negativas sobre o curso de Biblioteconomia: curso tradicional com risco de ser extinto, baixos salários, pouca visibilidade, trabalho técnico.
Aquelas palavras me perturbaram de tal forma que eu tomei uma decisão: vou em busca de algum profissional da Biblioteconomia que possa falar um pouco sobre a profissão, enfim, eu queria ter uma noção das possibilidades, mas também da realidade, da prática nos espaços de trabalho.
Foi aí que lembrei de uma vizinha que trabalhava numa biblioteca pública em Recife-PE. Em contato com ela, marcamos uma visita à Biblioteca Popular de Afogados, equipamento cultural municipal, mantido pela Prefeitura do Recife e que, na época, estava sob a gerência da bibliotecária Suzana Timóteo (In Memorian).
Numa bela tarde, tive uma dupla satisfação: conhecer mais uma biblioteca pública e conversar com uma profissional que me trouxe informações realísticas sobre a profissão, desmentiu uma série de informações que as pessoas falavam e reforçou as várias possibilidades de atuação na profissão. Suzana trazia em sua fala, a importância da militância na área, a defesa das bibliotecas como lugares de informação, de cultura, de educação e foi isso que me incentivou a persistir na minha escolha em prestar vestibular para o bacharelado em Biblioteconomia. Saí daquela conversa bem mais segura sobre a escolha que estava prestes a fazer e ainda com a cabeça fervendo de ideias: “bibliotecas como espaços de cultura e educação…” Isso mesmo, Educação!
Em 2005 ainda era possível cursar mais de um curso superior em universidade pública e, diante disso, decidi: irei prestar vestibular para Biblioteconomia da UFPE e Pedagogia na UPE. E assim foi. Para minha imensa alegria, em janeiro de 2006, eu recebia a notícia de que tinha sido aprovada em Biblioteconomia e em Pedagogia. Foram as melhores escolhas que já fiz para minha vida profissional e porque não dizer para minha vida de maneira geral.
Durante quatro anos eu só tinha tempo para estudar, cursar duas graduações simultaneamente não era fácil, mas foi extremamente gratificante. Em 2010, outra grata surpresa: fui selecionada para gerenciar a Biblioteca Popular de Afogados! Pois é, a biblioteca que conheci ainda como estudante de nível médio, seria o meu primeiro local de trabalho como Bibliotecária.
Considero-me muito feliz em ser Bibliotecária e Pedagoga! São áreas que se complementam, que precisam dialogar constantemente e a biblioteca pública é um dos exemplos de espaços essencialmente de cultura e educação.
2. Qual é a sua opinião sobre o futuro da nossa profissão?
Penso que a Biblioteconomia precisa se reinventar constantemente. Isso não significa deixar de lado a técnica, mas repensá-la; questionar os processos, os diversos conceitos até hoje defendidos por vários professores e profissionais e que, nem sempre, dão conta em representar e atender as necessidades dos usuários, dos espaços de informação. É da Biblioteconomia das pessoas que precisamos. É preciso que a técnica traga benefícios reais, que as pessoas que vão utilizá-la enxerguem a sua função social: servir de instrumento para organizar a informação, representá-la de maneira a contemplar todas as pessoas, grupos e comunidades, garantindo o acesso a informação sem qualquer tipo de discriminação. E ainda penso que, é urgente, o engajamento dos profissionais bibliotecários nas questões sociais da área: direito à leitura, movimentos sociais, bibliotecas públicas, escolares e comunitárias, políticas públicas, legislações da cultura, da educação, atuação em espaços não tradicionais, questões de gênero, grupos minoritários, enfim, são muitos temas que o bibliotecário precisa compreender bem para atuar em tantas frentes existentes num país tão diverso e cheio de desafios como o nosso.
3. Qual foi o seu maior desafio no trabalho?
O meu maior desafio se deu ainda em 2010 quando assumi a gerência da Biblioteca Popular de Afogados, uma das bibliotecas municipais do Recife. Digo isto porque ao chegar numa instituição com mais de 50 anos de existência, percebi que a realidade era bem distante daquilo que tinha aprendido nas aulas do curso de Biblioteconomia. Como gerenciar um equipamento com anos de história, com dificuldades orçamentárias, passando por processo de esvaziamento dos leitores, sem profissionais especializados, com equipe reduzida e desmotivada? Esses foram alguns dos desafios diários que enfrentei durante a minha passagem pela instituição. Confesso que foi uma experiência ímpar, vivi as “dores” e as “delícias” da profissão.
Nesse sentido, penso que um dos grandes desafios vai além dos espaços de trabalho: repensar urgentemente as grades curriculares dos cursos de Biblioteconomia existentes no país que, em sua maioria, estão essencialmente voltadas para as técnicas sem a necessária preocupação com a questão humanística da profissão. Tenho visto poucos profissionais que possuem formação adequada e qualificada para assumir a gestão de bibliotecas públicas, para atuar em ONGs, em movimentos sociais, enfim, em outras frentes que não as voltadas aos serviços técnicos.
Cada vez mais, sinto que o maior desafio é, como bem falou meu amigo e bibliotecário Raphael Cavalcante, envolver os estudantes e bibliotecários a refletiram sobre o papel social da Biblioteconomia e da urgente necessidade de que nosso exercício profissional caminhe em direção a este ideal.
4. Conte-nos um pouco sobre as ações e políticas voltadas para o livro, leitura, literatura e bibliotecas que você desempenha no estado de Pernambuco.
Como uma das articuladoras do Fórum Pernambucano em Defesa das Bibliotecas, Livro, Leitura e Literatura, movimento social que surgiu em 2006 e vem discutindo e realizando ações diversas (encontros, seminários, debates, reuniões, mapeamentos, incidências) no estado de Pernambuco, tenho contribuído com o processo de construção do Plano Estadual do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas – PELLLB. O Fórum defende a bandeira das políticas públicas de Estado para o setor e, desde 2012, quando retomou suas atividades, já realizamos três encontros de bibliotecas públicas, caravanas de mapeamento sobre a situação das bibliotecas públicas em PE, além de reuniões mensais, controle social, incidência política e atualmente, estamos em preparação da audiência pública que irá oficializar e publicizar o processo do PELLLB. Estamos mobilizando os elos criativo, mediador e produtivo do setor para que participem ativamente desse momento histórico e extremamente estruturador. Não podemos mais conviver com políticas governamentais frágeis que, constantemente, sofrem processo de descontinuidade. Precisamos mostrar um retrato da realidade (o que temos), planejar e elaborar diretrizes e metas, identificar as fontes orçamentárias e implementá-las (o que queremos e como queremos).
Somado a essa experiência, também atuo na Secult-PE, através da Coordenadoria de Literatura, setor que planeja, desenvolve e acompanha ações e políticas voltadas à Literatura, ao Livro e à Leitura. São diversas ações e projetos de formação, fruição e fomento: prêmios, festivais, palestras, linhas de fomento no Fundo de Cultura Estadual (Funcultura), distribuição de livros, seminários, palestras, formação de leitores, entre outros. É um trabalho árduo, de militância mesmo, afinal, entendemos que ler, escrever, ter acesso à informação de qualidade é um direito humano e, portanto, fundamental para a todos os cidadãos conquistarem outros direitos.
5. Qual é a sua visão sobre o atual momento político que estamos vivendo? Na sua opinião, qual é a importância do Bibliotecário nesse contexto?
Penso que, em nome da limpeza da corrupção – generalizada em todas as esferas e setores da sociedade brasileira – estamos caminhando para um quadro político de forte acirramento, intolerância entre grupos favoráveis e contrários ao processo de impeachment deflagrado pelo Congresso Nacional cujo alvo é a figura da Presidenta Dilma Rousseff.
Vejo como inconcebível termos um processo de impeachment conduzido por uma figura com o Eduardo Cunha, réu no STF, juntamente os demais parlamentares, todos eles envolvidos em corrupção e sob investigação. Abrir processo de impeachment sem crime de responsabilidade, nada mais é que GOLPE, não ao atual governo, que tem suas fragilidades, todos nós sabemos disso, mas um golpe contra a Democracia.
Nesse sentido, vejo claramente a importância do papel do profissional bibliotecário que, enquanto cidadão e membro da pólis (termo que se refere à cidade), integrante da sociedade, precisa entender que, conforme afirma o professor Edmir Perrotti, da Universidade de São Paulo (USP), “debater sobre democracia e informação é um ato pedagógico e não político-partidário”.
Como membro da Liga Bibliotecária, penso que as bibliotecárias e os bibliotecários precisam enxergar que há, sim, um golpe midiático de manipulação da informação, nosso objeto de pesquisa e atuação profissional. Manipular informações que tragam graves consequências ao país é um ato antidemocrático, portanto, precisamos de bibliotecários politizados discutindo sobre essas questões nas diversas instâncias de poder. Somos seres políticos, não podemos ficar à margem desse e de tantos outros acontecimentos vividos em nosso país!
6. Você sempre trabalhou dentro da biblioteca? Se não, onde mais? Como foi a experiência?
Não. Enquanto estudante de Biblioteconomia além atuar em bibliotecas universitárias, privadas e especializadas, tive a oportunidade de atuar no Arquivo Geral do Tribunal de Justiça de Pernambuco, com atividades voltadas para o acesso aos processos transitados em julgado, serviço de DSI e orientação/consulta aos clientes e advogados quanto ao uso da base de dados jurídica. Após formada, além da já citada experiência na gestão da Biblioteca Popular de Afogados, ingressei no Fórum Pernambucano em Defesa das Bibliotecas, Livro, Leitura e Literatura, movimento social organizado que desde 2006 atua em prol da defesa do direito à leitura e de políticas públicas de Estado para o setor LLLB, que considero como uma experiência ímpar nessa minha trajetória.
Também tive a oportunidade de atuar na Secretaria de Cultura de Pernambuco, especificamente na Coordenadoria de Literatura, setor, onde desde 2013 até o momento, desenvolvo atividades que passa pelo planejamento, execução e monitoração de ações e políticas voltadas ao Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas, são projetos, prêmios, festivais, ações pontuais de formação e fruição culturais. Dentre as diversas ações, destaco o processo de construção do Plano Estadual do Livro, Leitura, Leitura e Bibliotecas que, desde 2015, vem sendo coordenado pelas secretarias estaduais de Cultura e Educação juntamente com o Fórum PEBLLL.
7. Qual foi o último livro técnico que você leu? Sugira uma leitura técnica.
No momento, estou lendo “Tópicos em Biblioteconomia e Ciência da Informação: epistemologia, política e educação”, do bibliotecário e professor, Jonathas Carvalho.
Livro recém lançado pela Agência Biblioo, a obra reflete bem as inquietações presentes na área da Biblioteconomia e da Ciência da Informação. A cada capítulo, o autor nos convida a pensar e nos posicionar sobre cada uma das indagações que suscita. Traz também fortes críticas à prática da repetição e da reprodução pela qual muitos de nossos estudos caminham, muitas vezes produzidos apenas para atender a exigências avaliativas de órgãos governamentais e de fomento e que acabam por reforçar um pensar hegemônico, solidificado, sedimentado e com pouca possibilidade de ser questionado. Temas como política e educação se somam a reflexões acerca da mediação, da epistemologia, da documentação, entre outros. O autor ainda propõe o engajamento social, político e jurídico dos nossos profissionais da informação. Sendo assim, reitero o que diz a sobrecapa do livro “é uma obra fundamental para aqueles que desejam refletir de forma crítica acerca do fazer biblioteconômico e da dinâmica moderna da Ciência da Informação”.
8. Qual livro você está lendo agora? Sugira uma leitura para lazer.
No momento, comecei a ler “Associação Robert Walser Para Sósias Anônimos”, romance do escritor pernambucano Tadeu Sarmento. A obra traz uma narrativa inteligente que gira em torno de uma surreal associação formada por sósias e de uma cidade paraguaia criada sob os princípios da filosofia kantiana ameaçada por uma visita inesperada. Traz referências históricas e inúmeros filósofos são as ferramentas usadas por Tadeu Sarmento para ludibriar o leitor e tramar uma construção engenhosa e contemporânea.
Tadeu Sarmento é um dos ganhadores do II Prêmio Pernambuco de Literatura (2014), uma realização do Governo de Pernambuco, através da Secretaria de Cultura, Fundarpe e Cepe Editora que tem o objetivo de fortalecer a produção literária pernambucana por meio de uma política editorial que visa democratizar o acesso ao livro e apresentar-se como uma estratégia de promover a distribuição e circulação da literatura contemporânea pernambucana.
9. Quem é seu mentor na Biblioteconomia, por que?
Cida Fernandez, profissional que há anos tem atuado nas questões sociais da Biblioteconomia por esse Brasil a fora. Foi com ela que aprendi que não há mais sentido em continuarmos sendo profissionais da técnica, precisamos ser bibliotecários defensores do direito à informação, do direito à leitura como um direito humano, engajados com temas presentes em nosso bairro, em nossa cidade, em nosso país.
Quando em meados de 2010, buscava encontrar saídas para os problemas da biblioteca que gerenciava, conheci Cida por meio do Fórum Pernambucano em Defesa das Bibliotecas, Livro, Leitura e Literatura. Comecei a participar ativamente das reuniões e desde então, venho aprendendo com o Coletivo, com a vasta experiência de Cida no campo da cultura, da educação e das bibliotecas públicas. Tive a oportunidade, por reiteradas vezes, de ver e ouvir seus posicionamentos sobre diversos temas que envolvem o setor LLLB. A sua defesa constante pelo direito à leitura como um direito humano, a necessidade de políticas públicas de estado para o setor, a importância da incidência política em prol de bibliotecas públicas de qualidade são alguns exemplos em que me espelho e busco trazer incorporar diariamente no meu discurso e na minha prática profissional.
10. Mande um recado para todos os bibliotecários do Brasil.
Colegas, reflitamos juntos sobre nossas práticas para que, a cada dia, nos tornemos profissionais da Biblioteconomia das pessoas. Como diz meu amigo e bibliotecário Raphael Cavalcante, “pensemos nas técnicas, mas não sejamos escravos dela…Temos um potencial enorme nas nossas mãos que sequer nos damos conta…” Precisamos entender não há mais espaço para a defesa cega de velhas concepções e práticas biblioteconômicas, não é hora de separatismos, precisamos dialogar com nossos pares e com profissionais de outras áreas sobre diversas questões que nos levam a rever nossos conceitos e a nos posicionar diante dos desafios que diariamente surgem em nossa prática profissional. Eis um deles: tornar o Brasil um país de leitores. Unamo-nos nessa empreitada!