O bibliotecário da presidente: encontros

Como foi? Ela perguntou. Acho que fui bem, respondi. Ficamos nos encarando por alguns segundos em silêncio então perguntei:

– Qual é o seu nome?

– Fernanda, e o seu?

– Valentim. Muito prazer, Fernanda. Obrigado pelo “boa sorte”!

– Por nada. Eu sou fotógrafa da Presidência, fui designada para documentar os passos da Dilma aqui no Palácio da Alvorada.

– Legal! Eu acabei de saber que vou ser bibliotecário dela, alguma dica?

– Ah! Parabéns! Estou aqui só há 2 meses, mas posso dizer que ela é bem profissional. Pelo menos tem sido até agora.

– Tive essa sensação durante a entrevista, vamos ver, né?

– Nos vemos semana que vem?

– Com certeza!

Voltei pra casa ouvindo Antena 1 na maior altura. Estava tocando uma música chamada ‘Worry about you’ de uma cantora chamada Ivy. Curti o som, depois descobri que essa era a música tema de um seriado do Stephen King chamado Kingdom Hospital. Muito bom por sinal!

Quando cheguei em casa, liguei pra alguns amigos pra marcar uma comemoração. Tomei banho rapidamente e encontrei o pessoal num bar perto de casa. Bebemos até umas horas e um pouco antes de ir embora, perto de uma hora da manhã, recebi uma ligação de um número desconhecido. Normalmente nunca atendo esse tipo de ligação, mas nesse dia resolvi atender. Era a Fernanda. Demorei pra identificar, ainda não tinha me acostumado com a voz dela. Um pouco confuso, devido ao meu leve estado de embriaguês, nem lembrei de perguntar como ela tinha conseguido meu número, apenas começamos a bater papo e resolvemos nos encontrar pra comer alguma coisa não muito longe de onde eu estava. Fui andando, qualquer coisa voltaria pra casa de Uber.

Quando cheguei vi que Fernanda já estava lá. Ela se levantou pra me cumprimentar mas notei que tinha alguma coisa errada, ela estava com uma cara de choro, então perguntei o que havia acontecido. Ela começou a contar a história da vida dela pra mim, disse que morava sozinha em Brasília, que não tinha amigos por aqui, pois tinha acabado de chegar do Rio, que estava estranhando a cidade e as pessoas. Confortei-a dizendo que isso era absolutamente normal, ainda mais se tratando do pessoal de Brasília, que é bem menos caloroso que os cariocas e com isso ela foi se acalmando.  

Fernanda tinha 34 anos, era fotógrafa profissional desde os 20. Aprendeu sozinha a fotografar, como era de família pobre, aprendeu técnicas vendo videoaulas no Youtube. Ela me mostrou algumas fotos no celular e na máquina pequena que ela carregava no bolso. Fiquei impressionado com algumas fotos, mas uma em especial me chamou a atenção. Era uma foto dela, um pouco mais nova, com uma mochila grande nas costas em cima de uma montanha. Ela disse que era uma foto de 2012, ano em que ela foi no acampamento base do Everest.

Conversamos umas duas horas, perdi a noção do tempo. Eram quase três horas da manhã, não tinha mais como eu voltar de Uber, mas Fernanda, prontamente, me ofereceu uma carona. Logicamente, aceitei. Quando ela ligou o carro, o rádio automaticamente ligou, estava tocando Cat Power, não sei o nome da música, mas comentei com a Fernanda que eu admirava a cantora, mas que gostava de ouvir só quando estava deprê. Ela apenas concordou com a cabeça, rindo.

Cerca de 10 minutos depois estávamos na frente do meu prédio. Perguntei:

– Quer tomar um café?

– Já está tarde, quem sabe um outro dia?

– Claro! Vamos combinar. Quero ouvir tudo sobre essa sua viagem pro Everest!

– Só marcar!

Quando abri a porta do carro pra sair, ela segurou meu braço e me deu um beijo no canto da boca. Disse que havia adorado aquela noite e que queria repetir a dose. Dessa vez fui eu que concordei com a cabeça e dei um sorriso.

Tive uma simpatia instantânea por Fernanda e tenho certeza de que ela sentia o mesmo por mim. Fui dormir feliz ouvindo Cat Power. No outro dia acordei por volta das dez da manhã. Tinha que resolver uma papelada na Presidência, mas antes tive que passar no Cartório pra autenticar umas cópias de documentos para o pessoal dos recursos humanos. Missão do dia: resolver tudo até ás 16h.

Tomei um chá de cadeira no cartório mas, por coincidência, encontrei um amigo da época que cursava Biblioteconomia lá na UnB, José Carlos, o Zeca. Conversando com ele, descobri que ele não estava mais trabalhando como bibliotecário, mas que tinha aberto uma livraria bem próxima do cartório de onde nós estávamos. Comentei que estava querendo comprar um livro para a Dilma, ele riu um pouco incrédulo, achou que eu estivesse brincando e simplesmente me chamou pra conhecer a livraria dele depois que resolvêssemos tudo lá no cartório.

Uma hora depois apareci na livraria do Zeca e comecei a olhar o que ele tinha. Ele perguntou se eu estava brincando sobre estar procurando um livro pra Dilma, e então disse a verdade, ele ficou pasmo! Ficou muito feliz por mim também, me cumprimentou e disse que tinha várias sugestões. Disse que me daria três exemplares, um para a presidente, outro pra mim e outro pra ele, autografado.

Ficamos cerca de uma hora discutindo títulos, entre biografias de outros presidentes e líderes antigos, passando por ficções modernas e até uma história em quadrinho da Palestina, eram muitas possibilidades. Depois de muita discussão chegamos no consenso. Zeca me fez prometer que iria pegar a versão dele autografada. Antes de ir embora provoquei-o lançando a dúvida sobre o livro que escolhemos: será que ela vai gostar?

Zeca riu e, praticamente me expulsando da livraria, falou que eu podia voltar qualquer hora para discutirmos mais. Gostei muito dos insights dele, e respondi que voltaria em breve. Foi bom encontrá-lo e bater papo. Parecia que estava tudo como a gente tinha deixado lá nos anos de 2004, quando nos vimos pela última vez na colação de grau. Engraçado como as amizades da época da faculdade perduram. Éramos muito amigos naquela época, tinha um grupo de amigos muito unido.

Com a missão do dia concluída voltei para casa e liguei para Fernanda. Queria saber a opinião dela sobre o livro que eu tinha escolhido pra presentear a presidente. “A Era da Irracionalidade”  (The Age Of Unreason) de Charles Handy. O livro fala sobre as mudanças que estavam ocorrendo e o surgimento de uma nova ordem social no final da década de 80. As novas tecnologias provocando a diminuição dos postos de trabalho, corte de salário e diminuição da jornada.

Esse livro cresceu em importância nas décadas seguintes à sua publicação (1989). Com a ascensão da internet, o crescimento da terceirização e a explosão das redes sociais provaram que sua interpretação dos fatos estava incrivelmente precisa.

Fernanda não conhecia o livro mas ficou fascinada com a temática e me convidou para ir em uma livraria comprá-lo. Falei sobre a livraria do Zeca e combinamos de ir no próximo final de semana.

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